sábado, 30 de junho de 2012

Finde didático: John Langshaw Austin (1)

Nosso caro J.L. já ronda o blog há tempos, mas não teve ainda uma apresentação mais dedicada. Um de meus filósofos favoritos, dediquemos ao bem-humorado inglês, pois, este fim-de-semana.



John Langshaw Austin desenvolveu seu pensamento em consonância com a concepção pragmática de linguagem (1). Filósofo de Oxford, Inglaterra, sua principal preocupação foi abandonar a metafísica (2) tão pregnante, desde Platão, nas concepções de linguagem. 

“A definição da investigação filosófica como análise da linguagem surge assim como resultado de uma preocupação metodológica: evitar o solipsismo a que nos pode levar uma filosofia especulativa, uma filosofia da consciência de cunho psicologista ou metafísico, cujos resultados levam inevitavelmente a paralogismos e antinomias e, portanto, a uma posição dogmática, arbitrária, injustificável, embora se queira legítima, contingente, embora se queira absoluta” (Marcondes, D., 1992, p. 12) 
Dos três livros atribuídos a Austin, dois são transcrições de aulas e palestras, e um foi composto dos artigos que publicou. Suas idéias, portanto, não foram sistematizadas por escrito, o que é perfeitamente coerente com o deslocamento que propôs para o objeto da lingüística: da linguagem-sistema-simbólico para a linguagem-discurso, cuja unidade fundamental é dada pela fala. Esta concepção de uma linguagem viva, a “linguagem-pulsão”, como sugere Rudge (1998), atual e contextual, é o que leva Austin a culminar seu percurso propondo que a lingüística se ocupe da análise dos atos de fala. 

“The total speech act in the total speech situation is the only actual phenomenon which, in the last resort, we are engaged in elucidating” (3) (Austin, J. L., 2000 [1962], p. 148). 
A trajetória de suas aulas, transcritas em “How to Do Things with Words” (2000 [1962]), começa pela sugestão de que consideremos dois tipos de enunciados: os constatativos (ou constativos) e os performativos (4)

Enunciados constatativos seriam aqueles que descrevem fatos, comunicam informações. Um de seus exemplos mais recorrentes é ‘the cat is on the mat’, ou ‘o gato está no capacho’. A informação veiculada, como sugere a palavra ‘fato’, independe do contexto ou de relações intersubjetivas. O constatativo refere-se a dados objetivos, isentos, em si, de deformações, e o critério que norteia sua análise é sua adequação a estes dados. Classifica-se constatativos, portanto, como verdadeiros ou falsos. Usando os termos de Rorty, estamos no âmbito da linguagem como representação da realidade.

No entanto, existem enunciados que escapam à constatatividade. Prosseguindo em sua proposta, Austin sugere o performativo como outro tipo de enunciado. Performativos são enunciados-ações, que transcendem considerações sobre verdade e falsidade. ‘Eu prometo’, performativo típico, é um enunciado que nada descreve, mas é, em si, o próprio ato de prometer. Superada a dicotomia verdadeiro-ou-falso, Austin esboça então um outro critério de análise para os performativos: sua felicidade ou infelicidade, ou seja, sua efetuação ou não. O performativo ‘eu te dou este relógio’, por exemplo, terá sua felicidade comprometida caso, por exemplo, o relógio em questão não seja do falante, mas sim de outra pessoa. 

Fica claro, pelo uso dos termos ‘falante’ e ‘outra pessoa’ que as considerações sobre a (in)felicidade de performativos nos levam (como levaram Austin) a incluir o contexto em nossa análise. A linguagem-performance, assim, torna indissociáveis os dois elementos antes separados pela lingüística: por um lado, a fala em si (a ‘linguagem’); por outro, o falante, o ouvinte, a situação, a época, o local, etc. (a ‘realidade’). Torna-se inviável ver a linguagem como um sistema simbólico formal e independente que paira metafisicamente sobre a atualidade do discurso. Daí, eu diria, todo saber (enquanto discurso) ser político.

Ocorre que nem os enunciados constatativos, que essencialmente veiculam informações, dados, estão resguardados da contingência por estarem aquém do contexto. É que, em uma espécie de síntese em favor da pragmática da linguagem, Austin propõe um performativo implícito em todo enunciado aparentemente constatativo. ‘O gato está no capacho’, por exemplo, seria na verdade ‘eu afirmo que o gato está no capacho’, o que resgata a intersubjetividade, as convenções (políticas, no sentido etimológico), o contexto e a temporalidade (e contingência) de qualquer discurso. 

Dissolvida, ou pelo menos relativizada, a fronteira entre o constatativo e o performativo, o trabalho do lingüista torna-se a análise do discurso enquanto ato. Neste empreendimento, Austin propõe uma tese mais geral, e começa a distinguir, em todo e qualquer ato de fala, três dimensões fundamentais: o ato locucionário, aspecto literal do que é dito (correlato ao constatativo); o ato ilocucionário, ou o que é feito ao se dizer algo; e o ato perlocucionário, aspecto de efeito do que é dito nos interlocutores. 

Amanhã entraremos em detalhes desta distinção. Bom sábado!

Notas:

1 Que tem em Wittgenstein seu principal expoente. 

2 Cometo aqui uma certa heresia etimológica que pretendo minimizar com esta nota: metafísica, originalmente, nada mais é que o título dado pelo editor das obras de Aristóteles ao volume desta que figurava depois do volume intitulado “física”. ‘Meta’ é um prefixo grego que pode ser traduzido por ‘depois’. Metafísica, pois, é ‘aquilo que veio depois dos trabalhos sobre a natureza’. No entanto, o uso do termo foi transformado em direção a uma definição do tipo ‘ramo da filosofia que lida com a natureza fundamental da existência e da realidade’. Uso o termo desta última forma. 

3 “O ato de fala total considerado em uma situação em sua totalidade é o único fenômeno real que estamos, em última análise, engajados em elucidar” (tradução de Marcondes (1992)). 

4 No original, “constatives” e “performatives”. 

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