quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Na mídia (2)

Fernando Moreira, blogueiro d'O Globo, postou uma nota sobre um estudo de Psicologia norte-americano que concluiu que a exposição de mulheres a piadas que contestam suas habilidades ao volante as fazem dirigir pior. A notícia, pra mim, faz jus ao subtítulo do blog, mas o que acho "inusitado, curioso e bizarro" nela é que essas piadas ainda existam - só lembro de ouví-las na minha infância. Mas o tema é bom, e me pôs a pensar.

A nota é breve, mas, para os que lêem inglês, aqui há mais detalhes. Fala-se, por exemplo, em profecia auto-realizadora, e de fato o que está em questão aí é a inversão da causalidade tradicionalmente suposta na situação: as piadas não nascem da constatação da real performance das mulheres ao volante, mas a performance delas é que se adapta para se conformar às piadas. Isso porque estas últimas carregam consigo a expectativa, o desejo de quem as profere; são como um convite.

Falávamos de Austin, e ele continua nos acompanhando: se uso termos como "constatação" e "performance" sem perceber, é porque já o tinha em mente. O filósofo dizia que mesmo as mais objetivas afirmações ("constatativas") não descrevem nada, mas são, isso sim, como todo o resto do discurso, atos ("performativos"), instrumentos de ações as mais diversas no nosso invariavelmente humano mundo.

Pois bem, eu dizia que algumas piadas são convites - não só as sexistas, mas as racistas também, e provavelmente muitas outras. São quase um flerte, na verdade, na medida em que anunciam a fantasia do piadista e o lugar que teria nela o objeto da piada.

E qual a fantasia em questão no caso das mulheres ao volante? Talvez nada muito mais complicado do que a constelação mais típica de fantasias heterossexuais, aquelas que de tão comuns ofuscam nosso discernimento e chegam a parecer naturais: a castração, o falicismo, a diferença sexual, até, invariavelmente hierarquizada.

Pra ser nítido, trata-se da fantasia - das mais delirantes - segundo a qual a humanidade está dividida em dois grandes grupos, e a um deles - as mulheres - falta algo que o outro tem. Nesse caso específico, a capacidade de dirigir, não por acaso um termo que tem conotações interessantíssimas, tanto em português - controlar, governar - quanto em inglês - direcionar, forçar, penetrar (!).

Enfim, esse algo que falta sempre foi remetido a diferenças anatômicas - a começar pelas mais óbvias -, biológicas, genéticas e, contemporaneamente, neurológicas. Mas este estudo nos lembra que independentemente das constatativas conclusões neurocientíficas - há muitas, por sinal, que esboçam uma partilha da castração entre os sexos, reservando às mulheres a responsividade emocional e a aptidão para a fluência verbal, por exemplo -, há causas performativas, pulsionais, simbólicas, muito mais determinantes, operando no fundamento das relações humanas - e, claro, não só as de gênero.

Nenhum comentário:

Postar um comentário