Freud em dois momentos (Os chistes e sua relação com o inconsciente e O ego e o id) se refere a uma anedota que diz mais ou menos o seguinte:
"Há uma história cômica (...) de uma vila húngara onde o ferreiro fora condenado à pena capital. O burgomestre resolveu, entretanto, que um alfaiate e não o ferreiro devia ser enforcado, pois havia dois alfaiates na cidade mas não havia um segundo ferreiro e o crime devia ser expiado" (Freud, 1996 [1905], p. 192).
O efeito cômico da estória deriva do fato deste tipo de lógica ser o mais vigente inconscientemente, apesar de precisar ser racionalizado ou de outra forma disfarçado para vigorar "a céu aberto". Pra ser técnico, trata-se do mecanismo do deslocamento, que é o fundamento da transferência.
Mas, enfim, a analogia é entre a vila húngara e o aparelho psíquico. "A punição tem de ser exigida, mesmo que ela não incida sobre o culpado", diz o vienense em 1923. Nossas paixões, aí incluído o ódio, são mais determinantes de nosso comportamento do que os objetos que supostamente as "despertam", como se diz. O objeto, de fato, é negociável, e é por isso que tanto se fala na Psicanálise em *escolha* de objeto, ou escolha objetal.
Tenho a impressão que se teoriza mais sobre o deslocamento quando ele estabelece uma transferência positiva, amorosa: não há nada mais freudiano do que identificar nos amores atuais de um sujeito traços dos adultos significativos de sua infância. Mas o deslocamento é também, a meu ver, o conceito analítico mais importante para uma clínica da cultura que se debruce sobre a violência, e é justamente aí que a analogia incide.
Pois o que está em jogo na vila húngara é exatamente o que René Girard, pensador da cultura e da violência, chamou de substituição sacrificial: as vítimas da cultura, os sacrificados, os que sofrem punições exemplares, os, enfim, bodes expiatórios, são sempre, no fundo, qualquer um de nós, porque são, cada um deles, partes de todos nós.
E quando a indignação virtuosa cresce em coro em torno de um alfaiate, por mais culpado que seja, é interessante nos perguntarmos se não o estamos fazendo para poupar o ferreiro que nos habita.